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Como é Grande Agradecer!

Perspectiva pessoal acerca da poderosa prática da Gratidão, resultante de certa forma - e parcialmente - pelas Danças Circulares, como prática espiritual.


Publicado em 26/10/2018

Tatiana Gorenstein


"Modá (1) ani lefanêcha

Ruach (2) chayá vecaiemet

Shehechezarta bi nishmati bechemlá

Rabá emunatêcha (*)"

Começo meu texto pelas palavras da oração acima porque exatamente assim começam os meus dias, um após o outro, tão logo abro meus olhos ao despertar. Elas querem dizer: “Manifesto minha gratidão perante Ti; vivo e vigoroso espírito; pelo que fizeste retornar minha alma ao meu corpo; grande é a Tua fidelidade”.

Acho grande e significativo que a primeira palavra pronunciada nessa oração seja modá, seguida de ani. Modá (ou modé para homem) quer dizer “agradeço” e ani significa “eu”. Primeiramente dizemos “agradeço”, para somente então dizermos “eu”. Diferentemente do português, nesse caso enunciamos: “agradeço eu” – exatamente nessa ordem. O Eu concede o protagonismo ao agradecimento. Fato nobre também é agradecer por um dia que ainda vai transcorrer, não importa se ele vai durar 24 horas ou 5 minutos. Muito diferente de agradecer por algo que já recebemos, não?

A razão dessa reza ser pronunciada assim que abrimos os olhos pela manhã tem referência com os primeiros momentos de consciência - abrir os olhos - de um ser humano ao despertar. Além dela, o Salmo 92, que também contempla a gratidão, me mobiliza em especial. E há uma versão interpretativa da Comunidade Shalom que acho oportuna:

“É tão bom agradecer. Mas minha gratidão é necessária a D’us? Não. Não é a gratidão que importa, mas o ato de agradecer. Acordar para a Maravilha, para a Santidade. Para isso preciso superar o drama egocêntrico que chamo de vida. Cada “obrigado” reduz meu falso eu. Ao agradecer, abraço meu próximo. Ao agradecer, passo do teatro para a vida. Descubro o estar vivo que existe quando deixo de fingir que sou Deus e descubro que Deus está vivo em mim. É tão bom agradecer, pois é na gratidão que está o despertar.”

Desde pequenos ensinei meus filhos a agradecerem, não apenas pelos outros, mas por eles mesmos. Apesar de o agradecimento ser para o outro, o gesto de agradecer engrandece aquilo que foi recebido. Dessa forma amplificamos, dimensionamos o presente. Quando o agradecimento sai do seu remetente e chega ao destinatário, algo mágico sucede naquele que agradece. O agradecimento toma forma e passa a fazer parte nossa. Neste instante tudo é uma coisa só. Sinto que o agradecimento toma conta do corpo e faz tudo vibrar, mesmo que por instantes apenas. Brota uma sensação intensa de bem-estar. Retomo a menção acima “Deus está vivo em mim” para tentar explicar a sensação de plenitude e abundância que se instala; realmente não sobra um espaçozinho vazio. Tão grande assim!

O que chegou primeiro na minha vida foram as Danças Circulares. Somente então, e por seu intermédio, o Um Agradecimento Por Dia - igualmente uma prática espiritual. A proposta oferece o espaço e a oportunidade de se fazer agradecimentos publicamente, compartilhados no Facebook sob a hashtag #umagradecimentopordia. A mãe desta criação tem tudo a ver com as Danças Circulares, obviamente; por isso uma prática me levou à outra.

A ação de agradecer aos quatro ventos faz com que, além de você, o outro – ou o universo – testemunhem o seu agradecimento. Simplesmente agradecer o que for se tornou o compromisso comigo mesma de não só pensar o agradecimento, mas de colocá-lo em ação e vivenciá-lo. A proposta do “modá ani” é exatamente esta: pronunciar a reza pelo som das palavras em lugar de fazê-la em silêncio, o que seria pensá-la – como se não existisse.

Durante anos, frequentei a Escola SAT (**) de Claudio Naranjo dentro da abordagem da Gestalt Terapia. As atividades ali propostas, por meio da formação terapêutica pessoal, resultaram em processos transformadores que redirecionaram minha vida, já que muitos deles me proporcionaram insights poderosos. Certamente serviram de amplificador para que eu pudesse ouvir o chamado da prática Um Agradecimento por Dia. Algumas das atividades sob o mesmo denominador comum: intercâmbio de processos individuais que, quando expostos e compartilhados, tornaram-se bem mais uma experiência coletiva.

Na primeira ronda de partilha, o choque ao dar de ouvidos com a leitura que o terapeuta fazia de mim: ingrata com a vida! Fechei o “tempo” imediatamente; mas lá dentro, sozinha de mim, sabia que era isso mesmo. Foi duro encarar a ingratidão, mas eu a reconheci. Isso, por si só, já era um caminho. Na segunda ronda, durante o trabalho individual de outro participante, lembro-me apenas do seu movimento corporal e da menção da palavra gratidão pelo terapeuta. Pronto! Chorei um oceano de lágrimas, foi uma baita descarga. Acho que isso foi o comecinho de um novo andar. De lá para cá me tornei grata!

Muito mesmo mudou o meu olhar. Outras formas de agradecimento naturalmente passaram a fazer parte do meu dia a dia, como ser grata por coisas que outrora considerava insignificantes. Como é maravilhoso agradecer pelo som do canto dos pássaros ou pela fragrância de uma flor. Já é tão orgânico agradecer pelas coisas mais singelas, que não me surpreendo mais comigo mesma.

Hoje em dia, considero inebriante e arrebatadora a sensação de quando agradeço. Por vezes, levo pequenos sustos como se eu não conhecesse em mim o fenômeno da abundância. Minha gratidão é tão intensa que a dança “de fora para dentro” traz uma sensação avassaladora de abundância no rebote da onda. Só para constar, a gratidão atua externamente e a abundância responde internamente. Estranhamente, é como se eu fosse sufocar com a ideia maluca de que há abundância demais. Por causa da ingratidão, que antes fazia parte do meu repertório, a sensação de vazio era tão familiar que qualquer outra, contrária, parecia estrangeira. Felizmente, esta é agora uma confissão retroativa, pois minha experiência anterior foi superada ao confiar ao amor algum crédito - em vez da avareza de ser.

O rabino Michel Schlesinger compartilha o que Maimônides3 argumenta sobre a relação entre Deus e o povo judeu. Em tempos remotos a proximidade com Ele se fazia por meio de uma oferenda. Nos tempos atuais essa aproximação com o sagrado acontece por meio da oração, e – segundo sua crença – haverá um tempo em que essa relação espiritual será constante, sem necessidade alguma de permeio.

Em seguida o rabino acrescenta que sábios judeus se viram diante de uma possível contradição entre duas passagens do Livro dos Salmos. A primeira: “A terra e tudo o que está nela pertence a Deus”. A segunda: “E a terra foi dada ao HUMANO”. E diante da pergunta: “Então a terra é propriedade de quem?” acordaram que ela pertence a Deus antes da oração, mas que passa a ser de pertencimento do homem depois da bênção.

Faço alusão a um dito religioso, também trazido pelo rabino, para chegar aonde pretendo. Segundo a tradição, quando seguramos uma maçã na mão o fruto ainda pertence a Ele; mas, se antes de comê-la proferimos a reza: “Bendito seja Deus que criou o fruto da árvore”, aí então o fruto já nos pertence.

Portanto, Schlesinger conclui: “Quando desenvolvemos a capacidade de reconhecer nossas bênçãos e de dizer obrigada(o), tornamo-nos dignos daquilo que temos”.

Volto ao meu ponto: o gesto de agradecer, a exposição do agradecimento, e fazer com que se converta numa ação é o “dizer obrigada(o)”; não para dentro, mas para fora. E isso faz com que o que nos foi dado passe ao status de ser nosso. Considero que expressar a gratidão é tornar aquilo que foi regalado uma bênção. E a partir do momento em que foi abençoado nos pertence de fato, e passa a morar dentro de casa. Quanta bênção!

Tenho um mundo de coisas a agradecer. Que maravilha! Mas a reunião das palavras registradas nesse artigo tem o propósito único de explicitar minha gratidão à Dança Circular por continuar fazendo-me caminhar, errar, voltar, acertar, esperar, simplificar, ousar, silenciar, crescer e agradecer. Gratidão!

___________________________

(1) Para homens a escrita é: “modê”

(2) Consoante com o Judaísmo Reformista, a partir de certo ponto do meu caminho, passei a recitar a palavra Ruach (espírito - uma das traduções possíveis) em substituição a Melech (rei).

(*) Particularmente, a interpretação para esta oração que mais conversa comigo é da autoria da Rabina Shefa Gold:  "I gratefully acknowledge Your Face; Spirit lives and endures;You return my soul to me with compassion; How great is your faith in me!" ou "Com gratidão reconheço Tua Face; Espírito que vive e persiste; Que devolve minha alma para mim com compaixão; Quão grande é a Tua fé em mim!"

(**) SAT Seekers After Truth – Os Buscadores da Verdade

(3) Filósofo judeu do século XII (~1135-1204) citado pelo rabino Michel Schlesinger em Diálogos de um rabino: reflexões para um mundo de monólogos. Annablume Ed. 2018

Artigo publicado em 26/10/2018 no site www.dancacircular.com.br

Editado em 15/02/2024.

Tatiana Gorenstein: Psicóloga, Gestalt-Terapeuta e Focalizadora/Coreógrafa de Danças Circulares.

Referência:

SCHLESINGER, M. Diálogos de um rabino: reflexões para um mundo de monólogos.

1ª ed. São Paulo: Annablume Editora, 2018.


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