Alguns matizes do poder terapêutico e integrador da Dança Circular
(Este artigo foi publicado no livro O Poder Terapêutico e Integrativo da Dança Circular de Deborah Dubner pela Ottoni Editora – SP, 2015.)
Por Gabriela Bessa Barreto*
“Porque eu só preciso de pés livres,
de mãos dadas, e de olhos bem abertos.”
Guimarães Rosa
A Dança Circular desponta como um movimento rico em possibilidades que fala da condição humana. Ela aparece exatamente em um momento em que o homem vivencia seu cotidiano, suas experiências de um modo bastante afastado de si mesmo e do outro. No modo de vida contemporâneo a pessoa vive suas relações pontualmente, todos estão por todo lado como a vida virtual permite, no entanto, quando se procura de fato por alguém ele não está disponível como aparenta no rápido contato virtual porque a relação está limitada aos posts.
Sem querer fazer um discurso anti-tecnologia, o mundo virtual que habitamos diariamente facilita o acesso mas não favorece necessariamente o desenvolvimento, o passo-a-passo da interação. O processo é rápido e fragmentado, promove um aumento de contato sem de fato conhecer e formar vínculo. Além disso, nesse contexto em que vivemos todo o sentido de vida está condicionado a produção e resultados que atendem a uma forma de viver já pré-concebida e o maior risco que a pessoa pode passar é não atender devidamente essas expectativas sociais, ser marginalizado de alguma forma e sentir-se não pertencendo a esse mundo, sem um lugar possível. Na insistência desesperada para pertencer à essa realidade e ter sucesso o homem prefere submeter seu sentido de vida na conformidade e adoecer do que seguir seu rumo ousando novas referências. O sentido de pertencer é fundamental para o ser humano ainda que de modo bem torto, ou seja, que custe sua saúde.
Não é à toa que hoje em dia para tentar conciliar-se consigo e com o mundo o homem dispõe de diversas terapias desde as tradicionais até toda a gama de holísticas que surgiram, tratamentos, medicações, práticas e tudo o mais que fartamente o mundo tem oferecido. Por um lado, é fácil verificar um alto consumo de qualquer coisa que traga algum bem-estar de modo superficial e em caráter emergencial. Vemos um homem desesperado por conforto, acolhimento, respostas, orientação, sentir-se bem, em paz, etc. Ao mesmo tempo, torna-se possível o homem abrir-se para trilhar novos caminhos de busca de saúde com um olhar mais amplo e amoroso consigo mesmo e com o outro. Sinal de que os mecanismos e recursos comumente usados não estão funcionando mais a contento.
É nesse panorama que a Dança Circular, uma respeitosa senhora esquecida é desvelada como uma nova tendência de ponta. Dentre diversas restrições que vivemos hoje a Dança Circular traz de volta uma brecha para que o humano possa ser simplesmente humano. Despretensiosamente, ela exercita a aproximação das pessoas com elas mesmas e com o outro e resgata a vontade de querer ficar, de querer estar perto, promove um acalmar-se. Deixa em aberto um convite para um processo de descobertas de si, de desenvolvimento de vínculos, etc. Daí torna-se possível acolher um sentido de vida mais próprio e caminhar na direção do que de fato contribui para a saúde.
Na vivência da roda, inclusão e pertencimento surgem em nova perspectiva de vida e de mundo. Poder-ser o que se é e pertencer ao mundo em que vivemos com todas as falhas, dificuldades, tropeços, é uma provocação bem-vinda em meio a força que uma dança circular traz com a certeza de que todos ali estão no mesmo movimento ainda que não se perceba isso tão explicitamente num primeiro momento.
A Dança Circular transcende as necessidades da performance estética, da perfeita execução de movimentos para dar lugar à necessidade de uma harmonia interna que se expressa no coletivo visto em cada passo em que se consegue o andar junto, ao lado. À medida que a confiança vai ganhando espaço sente-se a firmeza de poder tentar uma, duas, três vezes e na repetição da sequência experimentar seu próprio ritmo coadunado com o do outro e todos se reúnem na música que estão ouvindo dentro do contexto de uma cultura.
Observando pontos importantes desta experiência, como por exemplo, dar as mãos em roda vemos como pode ser algo simples e complexo ao mesmo tempo. Se por um lado nos remete a alegria de compartilhar que podemos descobrir estarmos afinados com isso, por outro também podemos encontrar o constrangimento de se aproximar tanto, seja de si ou do outro e numa experiência que é real, mais que o confortável click de um post.
Quando as pessoas estão na roda, de mãos dadas na maior parte das vezes, inicia-se uma vasta experiência que vai desde compartilhar alegria e descontração até a retomada de reflexões e questionamentos pessoais, ou seja, há um impulso que movimenta algo e tira a pessoa de sua zona de conforto, de sua inércia.
Isso pode se apresentar em aspectos físicos como coordenação motora por exemplo, em aspectos emocionais como os sentimentos e sensações emergentes que remetem à algo pessoal ou outros de ordem espiritual quando há algum tipo de conexão com o sagrado. Ainda que todos estejam ouvindo a mesma música e realizando a mesma dança é impressionante como a experiência é singular e o que é movido é tão particular. Cada pessoa vai estabelecer uma relação, um vínculo próprio ainda que partilhe de tonalidades parecidas vindas daquela dança. Vivencia-se o igual e o completamente diferente ao mesmo tempo.
Como qualquer prática, uma vez que algo seja tocado, movido em alguém que se abriu à experiência da Dança Circular, inicia-se um caminho de trabalho pessoal do que emergiu e cabe o respeito a esse delicado movimento. Cada um desenvolve com seus recursos próprios as questões que advém daí e dá o direcionamento que pode e quer dar no seu próprio ritmo, passo-a-passo. Assim como uma pessoa leva um tempo para dar a volta completa no círculo enquanto dança, levamos um tempo para que coisas se esclareçam, a atenção e o foco possam ser bem utilizados, sentimentos digeridos, que possa haver uma melhor apropriação da vivência na vida.
Digno de se notar que é encantador o processo que cada pessoa percorre através da Dança Circular porque ela acolhe todas as possibilidades, todos os ritmos, todas as pausas, sem uma exigência de ter que chegar em uma meta específica do que seja o melhor viver, cada um descobre aí seu melhor viver.
Em algumas oportunidades de trabalho com a Dança Circular onde o foco é o autoconhecimento abre-se espaço para que as percepções pessoais possam não só ser sentidas mas também faladas e ouvidas caso se queira. Podemos costurar um pouco essa rica experiência através de dinâmicas e exercícios de reflexão afim de que a pessoa saia dali com algum entendimento sobre ela mesma na relação com os outros, com a vida, etc. Quando é possível uma continuidade maior, então há a chance de ver esse melhor viver despontando. A própria pessoa relata, os outros em volta também veem e inclusive dão algum feedback.
Geralmente se ouve os sentimentos positivos que emergiram no contato com a dança, algumas vezes os incômodos presentes também. Mas o mais importante é que mesmo quando algo parece ruim há um acolhimento generoso, um modo surpreendente de lidar, surge um aspecto leve para movimentar aquela informação e roda continua, a vida continua. Aos poucos uma sensação de fluidez vai permeando a experiência e então as dificuldades não são tão difíceis de lidar porque elas dançam junto com tudo o que há de bom.
É maravilhoso ver que as diversas transformações são pautadas singularmente na medida de cada um, em cada momento, quando menos se espera e todos, qualquer um pode começar em qualquer ponto sendo necessário um único requisito, entrar na roda.
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*Psicóloga clínica com Mestrado em Psicologia, consteladora familiar e focalizadora de Dança Circular.