Como é Grande agradecer!
Modá* ani lefanêcha / Mélech chai vecaiam / Shehechezarta bi nishmati bechemlá / Rabá emunatêcha
Começo meu texto pelas palavras da oração acima porque exatamente assim começam os meus dias, um após o outro, tão logo abro meus olhos ao despertar. Elas querem dizer: “Manifesto minha gratidão perante Ti, vivo e vigoroso Rei, pelo que fizeste retornar minha alma ao meu corpo, grande é a Tua fidelidade”.
Acho grande e significativo que a primeira palavra pronunciada nessa oração seja modá, seguida de ani. Modá quer dizer “agradeço” e ani significa “eu”. Primeiramente dizemos “agradeço”, para somente então dizermos “eu”. Diferentemente do português, nesse caso enunciamos: “agradeço eu” – exatamente nessa ordem. O Eu concede o protagonismo ao agradecimento. Fato nobre também é agradecer por um dia que ainda vai transcorrer, não importa se ele vai durar 24 horas ou 5 minutos. Muito diferente de agradecer por algo que já recebemos, não?
A razão dessa reza ser pronunciada assim que abrimos os olhos pela manhã tem referência com os primeiros momentos de consciência (abrir os olhos) de um ser humano ao despertar. Além dela, o salmo 92, que também fala sobre gratidão, me mobiliza em especial. E há uma versão interpretativa da Comunidade Shalom que acho oportuna:
“É tão bom agradecer. Mas minha gratidão é necessária a D’us? Não. Não é a gratidão que importa, mas o ato de agradecer. Acordar para a Maravilha, para a Santidade. Para isso preciso superar o drama egocêntrico que chamo de vida. Cada “obrigado” reduz meu falso eu. Ao agradecer, abraço meu próximo. Ao agradecer, passo do teatro para a vida. Descubro o estar vivo que existe quando deixo de fingir que sou Deus e descubro que Deus está vivo em mim. É tão bom agradecer, pois é na gratidão que está o despertar.”
Desde pequenos ensinei meus filhos a agradecer, não apenas pelos outros, mas por eles mesmos. Apesar de o agradecimento ser para o outro, o gesto de agradecer engrandece aquilo que foi recebido. Dessa forma amplificamos, dimensionamos o presente. Quando o agradecimento sai do seu remetente e chega ao destinatário, algo mágico sucede naquele que agradece, pois então aquele agradecimento toma forma, passa a fazer parte nossa. Nesse instante tudo é uma coisa só. Sinto que o agradecimento toma conta inclusive do corpo, faz tudo vibrar, mesmo que por instantes apenas. Brota uma sensação intensa de bem estar. Retomo a menção acima “Deus está vivo em mim” para tentar explicar a sensação de plenitude e abundância que se instala, realmente não sobra um espaçozinho vazio. Tão grande assim!
O que chegou primeiro na minha vida foram as Danças Circulares. Somente então e por seu intermédio, o Um Agradecimento Por Dia; que igualmente é uma prática espiritual. A proposta oferece o espaço e a oportunidade de se fazer agradecimentos publicamente, sendo compartilhados no Facebook sob a hashtag #umagradecimentopordia. A mãe dessa criação tem tudo a ver com as Danças Circulares, obviamente; por isso uma prática me levou à outra. Na verdade, me parece que são duas as mães: a terrenal, Deborah Dubner; e a mãe celestial, as Danças Circulares. Essa última inaugurou uma infinidade de coisas na minha vida. Além de uma lista extensa de tudo o que me trouxe, me presenteou também com a prática do Um Agradecimento Por Dia. Sou verdadeiramente grata por isso. Para sentir e viver a gratidão com a profundidade que alcanço hoje, a continuidade desse hábito foi fundamental.
A ação de agradecer aos quatro ventos faz com que, além de você, o outro – ou o universo – testemunhem o seu agradecimento. Saber – dentro da gente – que é muito bom agradecer pelo que temos em nossas vidas é uma coisa, mas o Um Agradecimento Por Dia fez algo a mais por mim. Tornou-se o compromisso comigo mesma de não só pensar o agradecimento, mas de colocá-lo em ação e vivenciá-lo. A proposta do “modá ani” é exatamente essa: pronunciar a reza pelo som das palavras em lugar de fazê-la em silêncio, o que seria pensá-la – como se não existisse. Acreditem vocês, essa senda de cura estava esperando pela minha passagem.
Vários foram os processos terapêuticos pelos quais passei durante anos, na Escola Sat do Claudio Naranjo. Dois deles, conduzidos por um terapeuta espanhol, redirecionaram minha vida. Certamente serviram de amplificador para que eu escutasse o chamado da prática do Um Agradecimento Por Dia. Ambos momentos muito similares: rondas gestálticas de processos individuais que compartilhados tornam-se mais bem coletivos. Na primeira ronda, o choque ao dar de ouvidos com a leitura que o terapeuta fazia de mim: ingrata com a vida! Fechei a “porta” instantaneamente; mas lá dentro, sozinha de mim, sabia que era isso mesmo. Foi duro encarar a ingratidão, mas eu a reconheci. Isso já era um caminho. Na segunda ronda, tempos depois, durante o trabalho de outra pessoa, lembro-me apenas do seu movimento corporal e da menção da palavra gratidão pela voz do terapeuta. Pronto! Chorei um oceano de lágrimas, foi uma baita descarga. Acho que isso foi o comecinho de um novo andar. De lá pra cá me tornei “umaagradecedorapordia”.
Muito mesmo mudou o meu olhar. E a partir de então muitas outras coisas se transformaram também. Do gesto público de agradecer, outras formas de agradecimento foram naturalmente fazendo parte do meu dia a dia. Sabe quando ficamos grávidas e tudo o que te chama à atenção são outras barrigas circulando pelas ruas? Ou quando a gente aprende a respirar conscientemente e isso fica mais natural a cada dia? O mesmo me acontece com a gratidão. Não necessariamente agradeço publicamente uma vez por dia, mas agradeço a inúmeras coisas que fazem parte do meu dia; o que não acontecia antes. Percebo outras mudanças também, como em relação ao que agradeço. Outrora eu as consideraria como as coisas mais insignificantes, simples e sem importância para a vida de qualquer um; mas hoje sei que é exatamente ao contrário. O mais interessante é que tudo isso acontece naturalmente. Já é tão orgânico agradecer pelas coisas mais singelas que não me surpreendo mais comigo mesma. Hoje em dia, percebo que é tão inebriante e arrebatadora a sensação de quando agradeço; e por vezes, levo pequenos sustos ao agradecer, como se eu não conhecesse em mim o fenômeno da abundância. Por causa da ingratidão a sensação de vazio era tão familiar, que qualquer sensação contrária parecia estrangeira.
O rabino Michel Schlesinger compartilha o que Maimônides** argumenta sobre a relação entre Deus e o povo judeu. Em tempos remotos a proximidade com Ele se fazia por meio de uma oferenda. Nos tempos atuais, essa aproximação com o sagrado acontece por meio da oração e segundo sua crença, haverá um tempo em que essa relação espiritual será constante, sem necessidade alguma de permeio. Em seguida o rabino acrescenta que sábios judeus se viram diante de uma possível contradição entre duas frases do Livro dos Salmos. A primeira: “a terra e tudo o que está nela pertence a Deus”. A segunda: “e a terra foi dada ao Homem”. E diante da pergunta: “então a terra é propriedade de quem?” acordaram que ela pertence a Deus antes da oração, mas que passa a ser de pertencimento do Homem depois da bênção. Faço alusão a um dito religioso também trazido pelo rabino para tomar o rumo que pretendo. Segundo a tradição, quando seguramos uma maça na mão ainda o fruto pertence a Ele; mas se antes de comê-la proferimos a reza: “Bendito seja Deus que criou o fruto da árvore”, aí então o fruto já nos pertence.
Onde quero chegar? Schlesinger conclui: “Quando desenvolvemos a capacidade de reconhecer nossas bênçãos e dizer obrigado, tornamo-nos dignos daquilo que temos”. Volto ao meu ponto: o gesto de agradecer, a exposição do agradecimento, fazer o agradecimento se converter numa ação é o “dizer obrigado”; não para dentro, mas para fora. E isso faz com que o que nos foi dado passe ao status de ser nosso. Considero que expressar a gratidão é tornar aquilo que foi regalado, uma bênção. E a partir do momento em que foi abençoado, nos pertence de fato, passa a morar dentro de casa. Quanta bênção!
Tenho um mundo de coisas a que agradecer. Que maravilha! Mas a reunião das palavras registradas nesse artigo tem o propósito único de explicitar minha gratidão à Dança Circular por continuar fazendo-me caminhar, errar, voltar, acertar, esperar, simplificar, ousar, silenciar, crescer e agradecer. Gratidão!
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* Para homens a escrita é: “modê”
** Filósofo judeu do século XII (~1135-1204) citado pelo rabino Michel Schlesinger em Diálogos de um rabino: reflexões para um mundo de monólogos. Annablume Ed. 2018
Tatiana Gorenstein, psicóloga, Gestalt-terapeuta e focalizadora de Danças Circulares.
Referência Bibliográfica:
SCHLESINGER, M. Diálogos de um rabino: reflexões para um mundo de monólogos. 1 ed. São Paulo: Annablume Editora, 2018.