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De carona com as águas

Um paralelo entre as danças circulares e as águas.


Publicado em 12/05/2019

Tatiana Gorenstein


Há alguns anos, num centro de cura espiritual, a entidade depositou um pequeno objeto em minhas mãos e disse: “Vá pelas águas. A sua cura é por aí.”

Recentemente ando mergulhada nas águas. Há menos de um mês fui convidada para me somar a um pequeno grupo de focalizadores numa roda aberta de Danças Circulares pela cura das águas e pela paz. O encontro se deu num parque, em meio a um bambuzal portentoso. Estávamos em círculo rodeados por plena e exuberante natureza verde. Sob nossos pés, a terra. Acima de nós, o céu.

Dançávamos “Oração de São Francisco” conduzida por outra focalizadora. Durante a dança, sem que nos déssemos conta, eis que um homem surge entre nós. Aparentemente ele veio do absoluto nada. Como éramos muitos, estávamos conformados em quatro círculos muito próximos um do outro. Não sei como, mas quando o vi, o homem se encontrava no círculo central. Sua aparição na roda ainda é fruto de mistério para mim e para muitos outros. Fiquei desconcertada de emoção. Do momento em que o percebi um pouco mais à minha frente, ali no coração da roda, chorei até que a música acabou.

Foi um choro intenso por dentro, mas límpido se notado do exterior. Sua presença foi especial. O tempo todo o homem esteve absorto em seus movimentos e energia, e mesmo assim acompanhou o fluxo da roda. Participou de um par de danças mais, até que se colocou como observador. Visivelmente sua condição era de extrema vulnerabilidade. Interagiu com as pessoas e se expressou verbalmente algumas poucas vezes. O que quero dizer é que apesar da experiência sublime que nos proporcionou, ele era de verdade! De carne e osso - esteve de fato entre nós, com voz e tudo!

Ao final do encontro compartilhando meu assombro com uma colega, fechei uma Gestalt. Sua lucidez me ajudou a encontrar o sentido: “E não estamos aqui, dançando as águas? Foram as águas que o trouxeram!” No momento atual, eu e as águas estamos muito próximas daquele ditado: “No creo en brujas, pero que las hay, las hay.” Poderia então dizer: “Não acredito em cura, mas que as águas curam, curam.”

Não cabe determinar se foram as águas, a energia da roda ou o conjunto delas. O importante é reconhecer que, na condição de ser “faltante”, pobre de alimento, de abrigo e de afeto – para não listar o resto – o homem vivenciou no seio das danças circulares, a experiência do ser “abundante” que todos somos. O presente que recebeu nesse dia foi poder conectar-se com seu ser mais íntimo e viver uma experiência amorosa. Fez isso no “colo” da roda. Veio compartilhar conosco para ser nutrido e para nutrir.

Passaram-se semanas e fui conhecer as Termas de Águas Calientes, no Chile. Faço aqui um aparte sobre as águas termais:

“Incorporando e trazendo vida, além da pureza corporal e espiritual, a água confere força, ânimo, alegria, visão, plenitude, saúde e bem-estar (...) a água simboliza a vida em toda a sua pujança e o facto de as águas termais serem águas naturais resultantes das chuvas que, infiltrando-se por rochas variadas das quais recebem as suas peculiaridades, vêm depois a brotar quentes da terra, carregadas de princípios mineralisantes, hidrominerais e terapêuticos a quem se atribuem várias curas e significados, também contribui para estas interpretações.” (1)

Bem cedo, enquanto a vida ainda se espreguiçava depois de uma noite de chuva ininterrupta, eu estava dentro da tina d’água – uma das opções para o contato com as águas termais.  Exposta ao ar livre, a tina tinha vista – adivinhem – para um bambuzal verde-que-te-quero-verde. Foi uma experiência e tanto me sentir acolhida pela volumosa quantidade de água quente à minha disposição. Até então eu estava em silêncio e imóvel, contemplando a natureza ao meu redor e curtindo o canto e a movimentação dos pássaros que faziam do bambuzal seu pouso. Mas aí recebi a companhia da música, o que me levou a movimentar o corpo dentro d’água.

Meu corpo foi acordando e eu com ele. O banho de água quente é profundamente relaxante, mas pode ser que, de carona, relaxe também os automatismos a que submetemos nosso corpo, como as desconexões que lhe impomos constantemente, adormecendo-o. Desligando o circuito automático é muito provável que a sensibilidade corporal fique mais aguçada. Certamente isso me aconteceu, porque senti acordar a libido. Um caminhão de vida estacionou em mim. Não me refiro ao termo libido restrito à sua interpretação sexual, mas libido como energia fundamental, energia vital, a excitação do corpo como um todo – acordado para a vida. Imersa na tina, meus pensamentos retrocederam para a roda no parque e me remeteram à experiência então vivida. Fiz essa conexão entre ambos os episódios levada pelas águas, é claro.

Não posso deixar de pensar nos círculos das danças como tinas d’água. Pensar a tina faz ver que é uma estrutura que contém a água em temperatura elevada e que sustenta essa condição por longo tempo. A partir daí a experiência de imersão promove relaxamento que, por sua vez, promove sensação de prazer corporal. Dessa forma, outros canais corporais e emocionais se abrem. Se a água é fonte de prazer e de conexão íntima pessoal e a tina de água quente é provedora de encontro consigo mesmo, através do resgate da vitalidade, podemos dar um salto para as rodas de dança circular, pois é como se um contexto refletisse o outro.

O círculo delimitado pelos praticantes e suas mãos dadas é como o “recipiente” contentor. Poderíamos dizer que essa é a estrutura visível e tangível, assim como as toras de madeira que conformam a tina. Daí para dentro, tudo o que não se vê está para ser sentido com o corpo e com a alma; ou seja, a troca de calor humano que se dá pela vivência coletiva do amor e da compaixão. Se ousarmos mais, mirando para o centro, para o espaço interior – da própria tina, da roda e de cada um – há o espaço “vazio”, que porta a mesma transparência da água e por isso é poderosamente criativo, produtivo e incubador do que quer que seja o processo e caminho existencial de cada um. Vejo aí a possibilidade curativa das águas, o que se relaciona com a prática das danças circulares. O convite que nos fazem para olhar para dentro, para nosso íntimo enquanto nos relacionamos com o coletivo, contidos e sustentados pela via amorosa é muito bem-aventurado e curador. Aproveitemos! Pode ser que a cada volta que damos no círculo nos aproximamos do ser abundante que somos no fim das contas. Afinal não foi assim que nascemos?

Nas danças circulares a gente dança as águas sim, como fizemos aquele dia no parque.  Porém as águas também nos dançam, pois são condutoras. Curiosa imagem passou por aqui agora: as danças circulares como o leito – espaço vazio que convida e permite que corra o fluxo das águas – e nós, os peixinhos que escolhemos mergulhar nesse rio, abençoados pelo universo, que nos presenteia com as danças e com as águas, ou, melhor, com as “dançaguas”.

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(1) Da saúde e bem-estar/mal-estar ao termalismo. M.E.Leandro e A.S. da Silva Leandro. Porto, 2015 disponível em http://www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0872-34192015000300005

Tatiana Gorenstein, psicóloga, gestalt-terapeuta e focalizadora de Danças Circulares.

 

 

 

 


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