Como assim não tem espelho?
Na época - a que me refiro mais adiante - a pergunta chegou automática à minha mente: “Como assim não tem espelho?”
Modo automático. Sempre soube da existência do botãozinho que desencadeia esse jeito dormente de viver e que parecia ser o único operante em mim, só que eu mesma não sabia onde desligar o “sem parar”. Mas voltando a ela, a pergunta. Da mesma forma que surgiu sem prenúncio, retirou-se sem deixar rastro. Simples assim, automaticamente: eu nem soube que veio; muito menos que se foi. No entanto, confesso que atualmente me choca pensá-la. Principalmente porque me dei conta do seu impacto sobre mim.
Foi no meio do meu caminho – esse que se fará conhecer aqui – que há pouco tempo fez-me nova visita! Desta vez eu já sabia comandar o tal botão; mais que tudo, era possível desligá-lo. Por isso nos revimos: a pergunta e eu. Aí pude notá-la. Levei um susto! Reconheci-a como minha. Talvez sua capa da invisibilidade não surtisse mais efeito. Nesse momento, fiquei feliz pelo universo ter me trazido a este encontro cara a cara. Convidei-a para passar uns dias como minha hóspede. Até o momento presente não desertou. E justamente por sua presença continuada, a partir deste artigo nasceu a intenção de compartilhar a minha experiência; ao mesmo tempo em que busco uma resposta. Antes de prosseguir esclareço que a pergunta marcou um antes e um depois. O contexto em que ela se deu também foi um divisor. O contexto, adianto aqui, é o das Danças Circulares.
Desde muito cedo, criei um vínculo afetivo com o balé clássico. A vida e minha mãe deram-me este lindo presente que até hoje me emociona. Posso dizer que o balé me ensinou muito do que sou e do que sei. Foi ele que me permitiu ficar em pé sobre minhas próprias pernas.
Me permito um aparte, fazendo uso da psicologia, e nos convido a uma analogia entre o “balé clássico” e como a criança pré-escolar lança mão de seus pais para compreender o mundo. O que quero destacar é que, para elas, eles são seus olhos, a verdade, todas as respostas, e o sentido de tudo. No entanto, a partir do momento em que ingressam no mundo escolar, tudo vai se abrindo pouco a pouco. Não raro podemos nos deparar com: “Não, mamãe, você está errada. A minha professora disse que...” (cada leitor pode completar essa frase à sua moda, será gol na certa!).
Aonde quero chegar? Na revelação daquilo que sugiro como análogo ao papel dos professores; ou melhor, ao papel que a escola passa a ocupar na vida das crianças. Em outras palavras: assim como a escola passa a representar um novo e mais amplo olhar sobre o mundo; as Danças Circulares – que chegaram na minha vida ulteriormente – apresentaram-me um novo horizonte, muito mais amplo.
Apresento-lhes então as Danças Circulares, a protagonista deste artigo. Foi nesse contexto que a pergunta urgiu. Sim, a pergunta do começo do texto. E foi esse caminho que me deu a possibilidade, muito tempo depois, de conversar com ela. Minhas reflexões são, portanto, fruto dessa conversa.
Uma semana antes do dia D - o dia da pergunta - a vida nos cruzou: o pai de um amigo do meu filho e eu. Como aquelas coisas que não se explicam, o assunto do bate-papo foi saltitando de escola para psicologia, e, por fim, estreitou-se para as Danças Circulares.
Enfim, o dia D: o primeiro dia, a primeira roda. Os primeiros olhares, os primeiros sorrisos, tudo muito diferente do que eu conhecia no entorno da dança. Depois dos minutos iniciais, passadas uma, duas danças em roda, algo intenso já se movia internamente. Estranho ou ao menos interessante notar que, mesmo ao experimentar um desconhecido prazeroso, o desconhecido é sempre desconhecido. Bingo!
Chegamos ao ponto. Aqui, a pergunta: “Como assim não tem espelho?” Fiquei sem chão e sem espelho! Tornei-me alguém das “sem”: como as “sem pipi”. Minha bronca se deu de forma inconsciente, é claro. Mas com o exato peso da sensação de castração. Na sala de aula em que a roda de dança se dava o espelho era ignorado por todos, menos por mim. A partir de então meu mundo não parou mais de cair. A dança circular foi desconstruindo tudo aquilo que eu acreditava conhecer. Apesar de desconcertante, e, talvez, exatamente por isso, foi um processo lindo de viver! Continua sendo... O que ficou do balé, por completo identificado com o espelho, foi tomando nova forma. O espelho foi uma das paredes que se desfez. Como foi difícil enfrentar a verdade de que o espelho é aquele objeto de metal polido que reproduz nitidamente a imagem que o defronta. E é apenas isto. Ponto.
Por trás desta descoberta ainda viria outra: vislumbrar o longo caminho até o encontro comigo mesma. Era isso o que eu temia e disso decididamente tentava escapar, quando me dei conta que sem espelho eu não toparia frequentar “essa praia”. Tudo o que conhecia sobre mim sempre esteve ali, refletido naquele objeto. Afinal, como será essa tal Dança Circular que não vem com espelho? Sem espelho: onde estou, quem sou? Percebi que me desconhecia. Veio o vazio então. Que silêncio intimidador!
Mas em seguida deram-me as mãos, novamente, os participantes da roda. Começava a terceira dança, e depois a quarta, a quinta... Essas mãos foram me dando contorno, puxando e encorajando meus passos na roda, levada por aquela energia tão sem palavras! Quando dei por mim já estava caminhando. Caminho sem retorno. Como toda caminhada, a qualidade dos passos foi muito variável, mas a conexão do grupo estabelecida, sempre a postos. E sólida.
Aquele moço do bate-papo veio a ser o meu focalizador de Danças Circulares. Suas mãos, pés e coração me inspiraram a mergulhar neste mundo. Este sim foi um espelho, sem preço! Nos anos que se desenrolaram, a cada olhar que cruzávamos na roda, às vezes conectados de outra forma, já que por vezes seus olhos estavam fechados, as palavras que outrora me compartilhou ecoavam em mim: “É por aí, não se ‘pré-ocupe’, confie”. Mostrou-me como se vive no amor! Foi a partir desse amor que pude conhecer a dança genuína em mim.
De volta ao dia D. Outra coisa eu desconhecia. Eu não sabia que já havia dado as mãos para as Danças Circulares. E acrescento: foi aí que tomei minhas próprias mãos. Passei a morar em casa. A partir de então sigo dançando, sentindo, dando, recebendo, vivendo... E agora vivendo o círculo que por natureza é ininterrupto. É tudo de bom!
Antes de finalizar quero também compartilhar que dizer sim a mim mesma para dar voz a este artigo foi um tiro no escuro. Muitas, quase a maioria das verdades aqui reveladas, eram desconhecidas inclusive para mim. Sentia que queria escrever e compartilhar, mas tinha medo. Uma precursora deste caminho circular (que por acaso traz balé na sua mochila também), sem o saber, certa vez deu-me a mão quando temi e me acompanhou. Reavivando suas palavras: “Também vivi o medo. O que fiz foi dar-lhe a mão e caminhar. E até hoje me acompanha”.
Por fim, me dou conta que este artigo foi um passo, como os inúmeros das danças, dado com a confiança de que esse caminho desemboca em casa. E que somente nesse lugar sagrado é que podemos olhar-nos nos olhos sem o intermédio do espelho e dar-nos a conhecer. A nós mesmos.
Artigo publicado em 22/10/2016.
Editado em 03/02/2024.
Tatiana Gorenstein: Psicóloga, Gestalt-Terapeuta e Focalizadora/Coreógrafa de Danças Circulares.