Passado o período de extrema relevância para o judaísmo (entre o Ano Novo e o Dia do Perdão), o solidéu – ou kipá – passou a me fazer companhia dia e noite. Não sei como nem porque outro fato interessante teve início na mesma época. Cada vez que o solidéu visitava minha mente, do outro lado do meu pensamento, estava o centro das rodas de dança circular. Relação? Penso que nenhuma.
Confesso que da primeira vez foi exatamente o que conclui. Solidéu e centro de roda? Nem considerei. Mas ambos me fizeram visita pela segunda vez. Fui convidada então a vislumbrar alguma relação. Experimentei a reação mais óbvia possível: só se for pelo formato circular. Mas assim que as visitas foram embora, deixei essa ideia de lado; afinal era muito superficial. Para minha surpresa, a história continuou; foi quando decidi estudar o tema para pôr um fim à minha cisma. Ou não. Mergulhei na leitura de alguns livros sobre temas judaicos. Encontrei algumas respostas, mas minha situação complicou-se um pouco mais. Fazendo busca avançada sob os termos “solidéu” e “círculo”, mais um vocábulo pediu licença para participar da conversa: nigun. Claramente meu desafio estava estabelecido, e assim nasceu esse artigo.
Nigun quer dizer melodia. É uma oração musical mística introduzida pelo Judaísmo Chassídico, e em sua grande maioria, sem o uso de palavras (1). Porém, para abordar o nigun, antes é preciso conhecer sobre Chassidismo. Trata-se de uma corrente religiosa ortodoxa – e mística – do Judaísmo fundada por Baal Shem Tov (O Dono do Bom Nome em Hebraico). Propõe um estilo de vida singular e visa à perfeição da alma de cada indivíduo. Reúne uma sorte de pensamentos que ajudam o ser humano a perceber a própria insignificância e aponta recursos potenciais para a auto elevação. Baal Shem Tov insistia que não era preciso ser um grande sábio e estudioso para se aproximar de Deus. Segundo ele, era possível chegar a esse objetivo pela prática simples e sincera, associada a alegres canções, danças e histórias. O movimento Chassídico enfatiza a "alma interior" de tudo que há. É considerado um caminho para a conscientização mais elevada e a transformação do ser.
O nigun vai além, precisamente além das palavras; ele atinge a alma para além dos limites. Nele a palavra geralmente não cabe, já que delimita e encerra. E como canção sem palavras, eleva a alma. Para Rabi Yosef Yitschak de Lubavitch: “Um nigun abre janelas na alma.” Por desnudar-se de palavras, quem os entoa se despe dos bloqueios do corpo e da mente, fundando assim brechas para seguir o caminho inicialmente alcançado pelo tsadic.
Novamente outro termo carece de contextualização. No nigun, um tsadic (o justo) codifica sua alma. Ao entoar um nigun, as pessoas se conectam com a roupagem interior da alma do tsadic e a partir dali vem a união com a luz que ele já encontrou. O tsadic é, portanto, aquele que atingiu um estado de ser mais elevado. Porém, o mais especial é que o tsadic é o mais humano dos seres humanos. Tudo num nigun deve ser estudado, cuidado e preservado: o ritmo, o silêncio, e a concentração. Como as palavras de um texto sagrado, as notas do nigun devem ser estudadas e repetidas em perfeita forma.
Tomando emprestado a inspiração de Manoel de Barros:
“Repetir, repetir – até ficar diferente. Repetir é um dom do estilo” (Barros, 2016).
Pensar em repetição remete à forma circular. Tomo como exemplo o círculo das danças circulares. Quando estamos de mãos dadas não existe começo nem fim. Somos o círculo ali estabelecido. E somos todos iguais. Somos um.
As músicas que nos acompanham e dão vez às danças também são circulares. Elas se repetem como as próprias danças. Segundo Rabi DovBer Pinson, no universo da música oriental, comumente, um conjunto de sons se desenvolve a partir de um padrão estabelecido, do início ao término. Isso convida a uma experiência contemplativa que abre caminho para a sensação de atemporalidade e de espaço interior. No mundo oriental o tempo é vivido como cíclico, sem a percepção do começo, meio e fim. Sua prática musical também é cíclica. Pode-se dizer que uma canção se volta sobre si mesma num círculo de unidade até que se percam princípio e fim.
A mística judaica – em especial a chassídica – contempla a transcendência por meio da música. Não a transcendência na música em si, mas na reação à música. De forma afim, a dança circular também permite transcender. Ela deixa a dança em si em segundo plano para focar na experiência da dança. Não tem a ver com os passos especificamente, mas sim com o que acontece enquanto se dança, em relação a quem dança e sobre onde se chega através da dança. A mesma mística diz que o nigun é uma forma das pessoas manterem uma comunicação num nível transcendente da alma, pois ele atende a essa natureza cíclica. A melodia sem palavras não se identifica com as diferenças, nem com as separações e a desarmonia. Daí só pode resultar uma forte união de almas.
Retomando as palavras de Barros e simultaneamente fazendo referência às Danças Circulares, é interessante ter em conta que nossa conhecida prática espiritual convida à repetição – refiro-me à repetição “até ficar diferente”, ou seja, singular e subjetivo. Não me refiro à repetição encerrada em cada dança – já que em parte delas, repetimos a mesma e por vezes a única sequência do começo ao fim. Refiro-me então a repetir a mesma dança em cada nova roda. Isso sim possibilita o "repetir até ficar diferente" da citação acima. E bem sabemos onde nos leva o belo caminho dessa prática de meditação ativa que são as Danças Circulares, seja pela mão da dança e/ou pela via musical.
Mas e a kipá - o solidéu? Onde se encaixa esta vestimenta nessa conversa triangular? Para além da concretude do formato geométrico, por favor! Particularmente, a interpretação que sempre me fez sentido foi que a kipá nos posiciona num lugar de humildade perante Deus. Ela nos lembra que sempre existe algo Maior acima de nós. E que estamos sempre acompanhados por esse algo, essa força ou energia. Até aqui seguramente há paridade entre o solidéu e o nigun. Ambos nos remetem à possibilidade, através da prática espiritual, de elevação da alma, do espírito. Porém, na minha busca, encontrei uma nova luz através dos olhos do rabino Nilton Bonder, que aqui compartilho. Suas próprias palavras:
“Quem sabe a kipá (solidéu) não seja espiritualmente talvez uma klipá (uma couraça, um bloqueio) que alerta: Se você deseja alcançar as alturas do mundo espiritual não caia na mais sedutora das armadilhas. Desligue-se do que há acima e concentre-se no que há à volta. Talvez a kipá nos santifica ao criar uma barreira ensinando que a transcendência não está no eixo vertical, mas no eixo horizontal.”
Confesso que a partir de então comecei a olhar para os lados para rastrear minhas questões, e não mais e apenas “para cima”. O resultado foi uma surpresa muito agradável. Na roda de dança circular, enquanto meus olhos percorriam horizontalmente meu entorno, quando não encontravam respostas pelo meio do caminho, justamente voltavam ao ponto inicial, ou seja, eu mesma. Isso é a dança circular! A relevância do outro no nosso caminho não é desprezível, muito pelo contrário, é essencial. Dispomos do outro, dos vários outros que nos ladeiam – e nos espelham – em cada roda, e depois de percorrer todo o círculo, chegamos a nós mesmos, para saber de nós mesmos.
Isso é “estar com Deus”. Pessoalmente, a dança circular é uma conversa com Ele. Sempre digo que a dança circular é encontro. Esse é o encontro a que me refiro; é o mesmo que dizer que a dança circular é o encontro com o outro, e a partir daí o encontro conosco. E o encontro conosco é sempre o encontro com o divino. Enfatizo que o tsadic é aquele em quem vemos (refletido) nosso verdadeiro eu, que nos permite entender que cada um de nós é essencialmente divino. Dessa forma, pelo nosso vínculo com ele, por entoar o nigun por ele criado, nos conecta ao Deus que respira dentro de cada um de nós.
Quiçá temos potencial para considerar que numa roda de dança circular podemos olhar para um lado e reconhecer ali um tsadic, e olhar para o lado oposto e nos surpreender com outro tsadic? Bonder acrescenta: “A tradição judaica só concebe a transcendência vertical uma vez que se tenha realizado a transcendência horizontal. O caminho dos céus se faz pelas trilhas da terra. (...) A ascensão acontece não pela elevação, mas pelo abraço, pelo olhar no olho, pela voz que se mistura, pela dança que encontra o outro. A ascensão está ao lado e não acima.”
Tenho para mim que é no centro das rodas que mora a espiritualidade da roda mesma e de quem dela faz parte. Ali estão reunidos o foco, o mistério, as bênçãos, tudo aquilo que nos reflete e tudo o que ainda não sabemos; ainda que o centro da vez seja invisível.
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(1) Neste artigo refiro-me apenas aos nigunim (plural de nigun) formados pela repetição de sons únicos, individuais, com poucas palavras ou sem quaisquer delas.
Artigo publicado em 20/11/2017 no site www.dancacircular.com.br
Editado em 27/02/2024.
Tatiana Gorenstein: Psicóloga, Gestalt-Terapeuta e Focalizadora/Coreógrafa de Danças Circulares.
Referências:
Barros, M. de. O livro das ignorãças. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2016.
Freeman, T disponível em http://pt.chabad.org
Bonder, N disponível em https://www.cjb.org.br
Pinson, D disponível em http://pt.chabad.org